SOBRE PERRENGUES TURÍSTICOS E A NOSSA TOLERÂNCIA AO ABSURDO
Guias experientes aprendem a identificar o momento exato em que o perrengue deixará de ser problema e começará a virar anedota. Há um olhar específico, perdido entre o susto e o riso, que anuncia: ‘Isso vai render’.
* Esse artigo foi publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, em 13 de julho de 2025, na coluna do historiador Leandro Karnal. Reproduzimos aqui no site porque ele conseguiu explicar melhor do que nós mesmos muito do que pensamos no Lugarzinho:
Leia a matéria original no link: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/sobre-perrengues-turisticos-e-a-nossa-tolerancia-ao-absurdo/
Por Leandro Karnal
A viagem perfeita é inimiga da crônica. Quanto mais bem-sucedido o roteiro, menos interessante o relato. Ninguém ouve atento uma história que começa com “deu tudo certo”. Ariano Suassuna, mestre em desconfiar de narrativas triunfantes, dizia com razão que as melhores memórias nascem do imprevisto. E ele estava certo.
Passeio no London Eye, em Londres, foi menos divertido do que se esperava, ao lado de turistas com hábitos alternativos de higiene

Durante muitos anos, acompanhei grupos em viagens culturais. Roteiros de arte, história e gastronomia cuidadosamente planejados me ensinaram uma lição: por mais que o itinerário seja impecável, o universo tem uma vocação especial para improvisar. E é nesse espaço entre o plano e o caos que mora o melhor da experiência – e da crônica.
Claro que, com o tempo, desenvolve-se uma espécie de tolerância ao absurdo. Guias experientes – e alguns professores – aprendem a identificar o momento exato em que o perrengue deixará de ser problema e começará a virar anedota. Há um olhar específico, perdido entre o susto e o riso, que anuncia: “Isso vai render”.
Quer ver? Em Londres, pleno inverno, embarcamos na famosa London Eye. Andaríamos no brinquedo apenas para ver o fog de cima… Abre-se a porta, sentamos. Junto a nós, uma simpática família que dava sinais de cultivar hábitos alternativos de higiene.
O cheiro acre, na cabine fechada, tornou-se um suplício. Quando o rapaz abria os braços para uma foto próxima a nós, éramos castigados por uma nuvem tóxica. Minha aluna, elegante, discreta, disse em voz baixa: “Vou vomitar”. Olhei aterrorizado para a declaração porque percebi que, ato contínuo, a previsão se efetivou. Fomos envolvidos pela involuntária projeção da dama sensível. Toda a cápsula foi atingida – inclusive os visitantes estrangeiros.
Terminou a gafe internacional? Não. Outra aluna do grupo, afetada pelo enredo e vítima de emetofobia (medo irracional de vomitar ou ver alguém vomitando), não se conteve. Imediatamente seguiu o exemplo. Desde o Grande Fedor de 1858, Londres não presenciava cena tão simbólica da condição humana. Saímos encharcados, envergonhados – e com uma nova compreensão sobre o que significa “atração turística”.
Cruzemos o Atlântico. Em Washington DC, após dias inesquecíveis entre museus e cerejeiras floridas, chegou o momento de partir. O grupo embarcou numa van rumo a Nova York. Quatro horas e duas paradas estavam previstas. Para facilitar, indicamos ao motorista a famosa Biblioteca Pública da Big Apple como referência – além do endereço do hotel. Ele não era fluente em inglês. Ainda não havia Waze. Recebeu nossas instruções com três firmes “yes” e iniciou a jornada. Era prudente, dirigia bem. Embalados pela suavidade do trajeto e exaustos da maratona museológica, dormimos. As paradas foram ignoradas. Acordamos com o anúncio de chegada diante de um prédio bonito. Malas foram retiradas com eficiência. “Thank you”, disse ele mais três vezes – e partiu. Estávamos, enfim, em… Newark, Nova Jersey.
A diferença entre Newark e New York é evidente para um anglófono nativo. Para estrangeiros sonolentos, nem sempre. Ficamos ali, ainda entre confusos e risonhos, tentando organizar o resgate. Três táxis aceitaram nos levar ao lado correto do Rio Hudson. Durante o embarque, vi uma aluna semitraumatizada cantar e dançar, com convicção de musical: “Start spreading the news, I’m leaving today…” Só entrou no carro quando o motorista – de Newark – confirmou com segurança que o destino era mesmo Nova York. Em tempo: nunca conhecemos a biblioteca pública de Newark. Cat escaldado tem fear of cold water.

Vamos às ilhas. No Taiti, uma experiência única. Uma missa na Cathédrale Notre-Dame de Papeete, construída durante o período de expansão missionária católica no Pacífico Sul. Altares, vitrais e esculturas exibem uma fusão do estilo colonial francês com elementos culturais locais. Santos católicos têm feições e trajes polinésios. Durante a homilia em francês, o celular de alguém do grupo tocou com um remix de “Ai, se eu te pego”. Som forte. O padre parou. O grupo parou. O pecado musical percorreu toda a nave. Após a missa, os fiéis ainda olhavam para nosso colega como se tivesse profanado o altar. Desde então, digo em palestras: configure seu celular antes da oração. Deus pode perdoar, mas os corais não.
E então, a China. Em Ping Yao, cidade muralhada e lindamente preservada, saboreávamos um jantar quando uma aluna me perguntou se o prato à mesa era kosher (código alimentar judaico). Respirei fundo e respondi com sinceridade: “Não tenho certeza sequer de que seja um mamífero”. Ela e outras adotaram imediatamente uma dieta de acelga e melancia. O ensopado permaneceu solitário à mesa – e foi devorado por mim, cético de fé e resistente de estômago. Ao contrário das obras de arte, certos sabores não devem ser interpretados. Apenas… degustados.
As histórias de que me recordo com mais afeto não são aquelas em que tudo funcionou, mas aquelas em que quase tudo desandou – e sobrevivemos. O que dá errado é o que ensina. O que gera desconforto é o que fixa. O que nos tira do prumo é o que mais tarde se transforma em sabedoria – ou, no mínimo, em uma boa piada.
No fim, a viagem é o ensaio da vida. Por mais que se planeje, o roteiro perfeito não existe. O que existe é a possibilidade de rir do atraso, da comida estranha, da cabine vomitada, da cidade errada e da tradução equivocada. Talvez seja isso que nos humaniza. E você? Já viveu um perrengue turístico? Se sim, parabéns: você tem matéria-prima para as narrativas divertidas.