Pedro Schiavon | 19/07/2023 | 0 Comentários

ACARAJÉ DA INÊS

Diz a lenda que o acarajé é um alimento sagrado oferecido a Oyá, também conhecida como Yansã, deusa africana que controla ventos, tempestades, relâmpagos e o fogo. Conta-se que, após se unir a Xangô, Yansã foi enviada por ele à terra dos baribas em busca de um preparo que, ingerido, lhe desse o poder de cuspir fogo. Com sua ousadia, a deusa provou do líquido e ganhou o poder.

É daí que vem uma história cheia de simbolismos e também o seu nome, já que na África “je” quer dizer “comer” e “akará” significa “bola da fogo” (e você que achava que era a sensação da pimenta…).

Considerado uma comida sagrada, antes, o acarajé só podia ser feito e servido pelas filhas de Iansã e Xangô, mas por causa da popularização do bolinho em todo o Brasil, hoje é servido por baianas de todas as religiões e até por homens. O interessante, no entanto, é que todos preservam um respeito inabalável pelos rituais que cercam o preparo do quitute, mantendo, inclusive, seu curioso formato oval, moldado na colher de pau e que imita o cágado, animal que é considerado o preferido de Xangô.

Alheio a tudo isso, me preocupo realmente é com o fato de eu adorar acarajé e ter uma dificuldade danada de encontrar boas opções, mesmo numa capital gastronômica como São Paulo. Foi o que me levou a viajar até a Vila Medeiros, onde fica o Acarajé da Inês.

Quase vizinho do famoso Mocotó, o Acarajé da Inês é um oásis de tranquilidade – ou um pedacinho de Bahia – numa agitada esquina do bairro. É um mergulho no clima baiano que começa do lado de fora, com a pintura da fachada que aproveita o declive da ladeira para imitar o casario típico do Pelourinho, passa pelo “perfume” da comida que não poupa quem passa pela porta e continua em seu interior, num estilo botecão simples, decorado com toalhas de chita, enfeites de palha e folhas de bananeira e com um simpático quiosque coberto de sapé, onde são preparados sucos e coquetéis.

Ali nosso querido acarajé encontra o respeito que merece. Reconhecido como Patrimônio Cultural da Bahia e do Brasil, ele é feito de forma artesanal, com o feijão fradinho triturado à mão e amassado na hora até formar uma massa bem leve, frito no azeite de dendê e bem recheado com vatapá, caruru e camarão seco. Ele chega à mesa quente e crocante em duas opções: unitário ou em porção de dez bolinhos.

Mas apesar do acarajé ser a grande atração da casa, o cardápio desfila uma baianidade sem fim. São abarás, moquecas, bobós e escondidinhos. São cozidos baianos, dobradinhas, mariscadas, baiões, arrumadinhos e sarapatéis. Para quem só quer beliscar, iscas de peixe, lulas, porquinhos e polvos. E para quem não dispensa a sobremesa, cocadas de coco queimado, ambrosias e pudins de tapioca.

A culpa disso tudo é da Sra. Maria Inês dos Santos, a Inês, uma simpatissíssima e tímida senhora baiana que, como tantas outras, veio para São Paulo ganhar a vida e mostrar ao mundo o que é que a Bahia tem. E trabalhando durante dez anos como empregada doméstica, ela sustentou a ideia de – um dia – montar seu restaurante, onde recriaria as delícias da sua terra.

Primeiro, passou a utilizar seus domingos (o único dia livre da semana) para vender acarajés na feira. Depois, passo a passo, passou a fazê-los em um modesto bar bem pertinho de onde se encontra hoje, improvisando em um fogão de duas bocas e vendendo-os como prato feito.

Há alguns poucos anos, com a ajuda da filha Flávia – que trouxe também consigo uma boa experiência no ramo hoteleiro, incluindo aí um aperfeiçoamento na Europa – construiu os alicerces de seu sonho, reformando o ponto escolhido, trabalhando o local e o deixando-o com a cara que tinha em sua imaginação: um local simples, com boa comida, bons amigos e que ajuda a aplacar um pouquinho a saudade da Bahia.

Na vergonhosa época do Brasil colonial, o acarajé era vendido nas ruas da Bahia em tabuleiros que as escravas equilibravam sobre suas cabeças, enquanto iam cantando pregões para atrair a freguesia. Freguesia que até hoje só fez crescer, afinal, além do preço acessível e do sabor delicioso, a simpatia das baianas sempre foi um tempero a mais.

Corajosas, independentes e empreendedoras, essas mulheres foram aos poucos arriando seus tabuleiros, típico hábito africano, que passou a significar também uma luta contra a infâmia da escravidão que imperava no país.

Conta-se que com as vendas da iguaria, muitas delas conseguiram comprar sua própria liberdade. Com o mesmo acarajé, Inês deu vida ao seu sonho. Epa-Hei Oyá!

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