Ó DO BOROGODÓ
Há um beco em Pinheiros que não cabe nos mapas nem nos planejamentos da especulação imobiliária. Um beco de alma grande, onde o tempo anda de tamborim na mão e canta alto nos ouvidos atentos dos que sabem ouvir. É ali, na Rua Horácio Lane, 21, que o samba senta à mesa, pede uma cerveja gelada e sussurra histórias nos compassos do choro e nas harmonias do coração.

É ali que vive o Ó do Borogodó, mais do que um bar, mais do que uma casa: um santuário do que é nosso. Fundado em 2001 por Stefânia e Leonardo Gola (que foi nosso querido e saudoso vizinho de porta na rua Patápio Silva, na época em que o Chico nasceu). Mas o “Ó” cresceu como crescem as rodas de samba — de forma orgânica, entre amigos, entre notas que se repetem nunca iguais. Ali não se vai apenas para ouvir música. Vai-se para viver a música. Vai-se pra ver de perto o tal do “borogodó”, que não se explica, só se sente.
“Samba é a voz do morro, é o nosso pão,
samba é a voz do povo, é o coração…”
— Zé Keti
No Ó do Borogodó, o samba não foi pasteurizado nem maquiado. Ele continua cru, quente, sincero. Os pés batem no assoalho como quem bate palma pro santo, e os músicos — muitos deles da velha guarda — se revezam como sacerdotes em liturgia noturna. Dona Inah, Fabiana Cozza, Zé Barbeiro, Alessandro Penezzi… cada nome que passou por lá deixou um pouco de si e levou um tanto do Borogodó no peito.

Sobrevivendo à pandemia
Mas nem todo batuque é festa. Em 2021, veio o baque. A pandemia fechou as portas, acumulou dívidas e ensaiou um fim que parecia inevitável. Mas o que acontece quando tentam silenciar o samba? O povo canta mais alto. Uma mobilização popular arrecadou cerca de R$ 300 mil, permitindo que a casa quitasse suas pendências e permanecesse ativa. O Borogodó resistiu, como resiste a alma brasileira.
“Se acaso você chegasse
No meu chorinho, e o borogodó ouvisse,
Talvez você dançasse,
E nunca mais partisse…”
— Lupicínio Rodrigues

Fica Ó!
Agora, a ameaça vem de outro lado: o concreto quer tomar o que é raiz. O dono do imóvel quer vender. A cidade que sempre avança sem olhar pra trás tenta mais uma vez apagar a memória viva. Mas Stefânia, como uma porta-bandeira solitária no meio da avenida, bate o pé: pede tombamento, pede respeito, pede escuta.
Ela não está sozinha. Tem gente grande na campanha, como Chico César, Zeca Baleiro e outros. Porque cada mesa de madeira já ouviu mil histórias. Cada microfone já deu voz a mil sambas. E cada domingo de feijoada é um manifesto: aqui o samba é resistência, é afeto, é patrimônio. Não se constrói um prédio sobre o sagrado.
“É, meu amigo, só resta uma certeza:
a tristeza termina onde o samba principia.”
— Paulinho da Viola

O Ó do Borogodó pode ser pequeno em metros quadrados, mas é imenso em história. É uma espécie de Beco das Garrafas de São Paulo, é terreiro, é sala de aula, é ponto de encontro. É a prova de que o samba, mesmo encurralado por muros e cifras, ainda sabe como escapar — pela fresta, pela nota, pelo verso.
Enquanto houver um tantinho de borogodó neste mundo, o samba seguirá vivo. E a cidade que quiser ser de verdade, vai ter que aprender a ouvir.
Ó do Borogodó: R. Horácio Lane, 21 – Pinheiros. Tel (11) 3813-5898