HOSTEL DA MILLA (Presidente Figueiredo/AM)
Com o objetivo de inspirar e promover avanços nas discussões e práticas sobre turismo responsável e sustentável no Brasil, o Ministério do Turismo – MTur e o Centro de Estudos de Turismo e Desenvolvimento Social (CETES/USP) lançaram o livro “Turismo Responsável: resultados que inspiram”, de autoria de Marianne de Oliveira Costa, Ana Rosa Proença, Karina Toledo Solha e Gustavo Pereira Pinto. Elaborado pelo Instituto Vivejar, com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, o livro reúne 10 exemplos de iniciativas comprometidas com um turismo de impactos positivos em território nacional. Uma delas é a Pousada da Milla, cuja matéria reproduzimos abaixo.
Mas independentemente de ler esse trecho aqui no Lugarzinho, vale a pena demais você ler o restante do livro, que traz todas as iniciativas selecionadas e um amplo contexto em que nasce e se desenvolve o movimento do Turismo Responsável, além de muitas dicas de como empresas, destinos, organizações e viajantes podem começar a colocar a responsabilidade em prática e motivações para serem adotadas durante o processo. Divirta-se!
POUSADA DA MILLA (Presidente Figueiredo/AM)
“Nós acreditamos que pequenas ações podem gerar uma reação realmente revolucionária.”
Presidente Figueiredo (AM), também conhecido como Terra das Cachoeiras, é um município de 25 km² e 42 anos de existência que está a cerca de 100 km de Manaus. Foi onde, em 2018, o Local Hostel Figueiredo foi inaugurado. Até então, por conta da proximidade com a capital, as agências de turismo só vendiam viagens “bate e volta” para o município. Ou seja, as pessoas não passavam a noite no local.
Como a maior parte do público era de jovens mochileiros, antenados na internet, o hostel viu ali um meio por onde poderia divulgar o destino com facilidade. Então, junto com a agência de receptivo Iguana Turismo, convidou influenciadores digitais e blogueiros para divulgar o destino “Presidente Figueiredo – a Terra das Cachoeiras”. Fizeram esse trabalho por 2 anos. A agência fez toda a parte operacional e o Hostel ofereceu a hospedagem como cortesia. Chamaram influenciadores com diferentes públicos, dos menores – de mil seguidores – até os com mais de 1 milhão de seguidores.

“Veja bem, estou falando de divulgar o destino, e não o hostel. Acho que esse é o maior legado que a gente deixa: o aumento do tempo de permanência das pessoas que ficam aqui em Presidente Figueiredo!”
Ações como essa fortalecem a todos, pois o turista deixou de fazer o bate-volta e aumentou a permanência no hostel entre 2 e 4 dias. E se antes quase não consumiam na cidade, agora frequentam os restaurantes, as pousadas, as lojas de artesanato. Depois de dez anos sendo sócia do Local Hostel, Camilla decide sair da rede e abrir a própria marca, o Hostel da Milla, que depois se tornaria a Pousada da Milla. Apesar do desafio de começar a marca do zero, ressalta que permaneceram em primeiro lugar em plataformas como Tripadvisor e Booking, o que gera confiança e credibilidade na hora da reserva.
Com a maternidade, minha vida deu uma reviravolta, minha visão de mundo mudou e minhas prioridades também. Quando eu e meu sócio percebemos que já não estávamos mais olhando para o mesmo caminho, entendemos que era o momento de nos separar. Hoje a Pousada da Milla leva o meu nome, minha personalidade e tudo aquilo que hoje faz sentido pra mim.
Mas, como turismóloga, Camilla mantém o propósito: levar o nome de Presidente Figueiredo para mais pessoas por meio de um turismo responsável e que contribui para a comunidade, atraindo um turismo qualificado para o município. O público do hostel é jovem, entre 25 e 40 anos, mochileiro e brasileiro. São pessoas que viajam para encontrar a natureza, que estão conhecendo a América do Sul, a América Latina, o Brasil. A maioria são mulheres.
E os hóspedes, cada vez mais, estão escolhendo a gente pelas nossas ações, né?! No nosso Instagram, eu até coloquei ali: “mulheres na liderança”, que eu acho que é uma sinalização que a gente precisa falar sobre isso, precisa estar evidente ali. E hoje, depois de cinco anos, eu estou conseguindo realizar meu sonho, como empresária, de receber realmente um público que está consciente e preocupado em apoiar o empoderamento feminino.
Há dez anos, o Hostel da Milla evitava ao máximo usar descartáveis, desde quando ainda era parte da rede Local Hostel. Hoje, não oferece canudos e não vende garrafas plásticas de água, até por se tratar de um resíduo volumoso. Sempre ofereceu água filtrada, do bebedouro, gratuitamente. Essa ação, que parece pequena, evita que 20.000 garrafas pet sejam descartadas por ano.
Aqui na Amazônia, a galera bebe muita água por conta do calor, né?! Mas a Pousada da Milla não usa descartáveis. Pensar além do financeiro me fez tomar a decisão de não vender água. Eu estou pensando muito além: “Cara, eu não vou produzir esse lixo sabendo que aqui não tem uma destinação adequada!
Materiais como papelão e alumínio são encaminhados a pessoas que reciclam ou a centros de reciclagem. Quanto aos resíduos de vidro, são levados até Manaus no transporte pessoal, porque em Presidente Figueiredo não há coleta seletiva nem centros de reciclagem de vidro.
Para a Pousada da Milla, é fundamental trabalhar de maneira sustentável não somente no cuidado com o meio ambiente, mas em todos os pilares.
Por isso, seis dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável orientam todas as ações do hostel:
3. Saúde e bem-estar. 5. Igualdade de gênero. 8. Trabalho decente e crescimento econômico. 10. Redução das desigualdades. 12. Consumo e produção responsável. 13. Ação contra a mudança global do clima.
Priorizam a contratação de pessoas que moram em Presidente Figueiredo e trabalham enfaticamente no empoderamento feminino: “Aqui na Pousada todas as colaboradoras são mulheres. Para não dizer que eu não contrato homem, temos um folguista da madrugada que é homem. O restante são todas mulheres”. Todas as funcionárias são registradas em Carteira de Trabalho e suas remunerações correspondem ao teto salarial. Para Camilla, sustentabilidade também é proporcionar qualidade de vida a todas as colaboradoras.
Hoje, na equipe, eu tenho preferência por mulheres. Principalmente mães, ainda mais eu que sou mãe e vejo na pele esse preconceito que tem de não contratar, de ter salário mais baixo […] Deus me livre! Me coço só de pensar nisso!
Depois que se tornou mãe, Camilla sente que ficou mais empática, principalmente com as colaboradoras que já são mães. “E eu sei na pele o que é conciliar o trabalho, o cansaço, as noites mal dormidas… Tenho muito mais empatia com o que está acontecendo, principalmente na vida pessoal de cada uma. Então hoje em dia eu cuido muito mais disso”.
Nós vivemos um dia de cada vez, né? Estou preocupada com o bem-estar delas tanto quanto com seu rendimento em relação ao trabalho. Hoje, todo começo de reunião a gente faz uma pausa pra respirar. Alimentamos um potinho de gratidão. Nós fazemos nossas celebrações! Sempre que nos deparamos com algo desafiador, a gente se prepara, atravessa esse momento e, depois, a gente celebra. Eu tiro um dia, a gente vai pra cachoeira, fazemos um almoço só nosso… Celebramos as nossas pequenas conquistas. Estou muito feliz com essa mudança toda e tenho certeza que elas também sentiram muito esse impacto.
Além da remuneração e desse cuidado, cada uma recebe bonificação por metas batidas, e há reconhecimento remunerado para a colaboradora mais bem avaliada no mês. Independentemente de seu rendimento, possuem um pequeno benefício para que invistam em si mesmas. Além disso, o Hostel da Milla oferece ajuda financeira para estudos, pois considera importante tanto o bem-estar quanto o aprendizado das colaboradoras. Fazem treinamentos periódicos em temas como: processos internos, trabalho em equipe, missão, visão, valores e atendimento. Uma vez por mês realizam feedbacks individuais. No início, ainda com o Local Hostel, só eram contratadas pessoas da área de turismo e que tivessem domínio do inglês. Assim, 100% da equipe era formada em turismo ou áreas relacionadas. Atualmente, a única exigência é que tenham alguma formação depois do ensino médio, independentemente da área. De quatro colaboradoras, duas são formadas em turismo. Saber falar inglês também deixou de ser um requisito, pois na cidade não existe oferta de curso de inglês. Camilla apoia com o atendimento em inglês, quando necessário, mas incentiva que estudem o idioma pela internet. “No YouTube tem milhares de cursos de inglês, então esse é um desafio que eu estou passando aqui: conscientizá-las e sensibilizá-las de que elas precisam aprender outro idioma” (Camilla, 2023).
“Nossa equipe é excelente e eu gosto muito de todo mundo que trabalha conosco. Eu até gostaria que trabalhassem eternamente para mim, mas eu sei que uma hora elas vão estar em outros lugares e ter um segundo idioma vai levá-las a outro patamar!”
Na hora de contratar serviços, o Hostel da Milla dá prioridade aos fornecedores e guias turísticos locais. Buscam fazer parcerias com aqueles que também se preocupam em manter a floresta em pé, que remuneram bem seus funcionários e os produtores locais. Contratar pessoas da cidade contribui para a permanência delas em Presidente Figueiredo. Na pandemia, por exemplo, quando o hostel parou, o ciclo todo parou: a padaria, a lavanderia, o restaurante…
Tivemos que demitir pessoas e, nossa, foi muito triste, sabe?! Mas, ao mesmo tempo, acho que essa roda toda que gira em torno do turismo se fortaleceu muito! E acho que fortalecendo nossa marca, a gente contribui para o fortalecimento do turismo, trazendo pessoas mais para cá e gerando mais empregos.
No início de 2023, o Hostel da Milla encabeçou o Movimento Trade Turístico, reunindo alguns empresários do setor de hospedagem, agências, guias e restaurantes, pois percebeu que o empresariado de Presidente Figueiredo não se reconhece como trade turístico, “e sem essa identidade cada empreendedor fica muito isolado, não se sente parte de um todo”.
A primeira ação consistiu em convidar empresa por empresa e sensibilizar os empresários a se unirem em prol do turismo, entendendo o papel desse coletivo de empresários perante as instituições que os representam, sejam elas públicas ou privadas. A decisão de tomar iniciativa ocorreu porque não há uma governança ativa. O Conselho Municipal de Turismo (COMTUR) ficou parado por muitos anos e agora caminha lentamente, assim como a Associação de Meios de Hospedagem, na qual o Hostel da Milla se insere. “Agora estou me preparando para concorrer à eleição da presidência do COMTUR e da Associação” (Camilla, 2023). A Secretaria de Turismo, Empreendedorismo e Comércio de Presidente Figueiredo (SEMTEC) realiza, em parceria com o Sebrae, ações pontuais de qualificação, criação e formalização de CNPJs. Algumas empresas já foram contempladas com placas solares, na primeira etapa do projeto Brilha Amazonas, do governo do estado. Mas para ocorrerem mudanças no setor e no turismo de Presidente Figueiredo, é preciso que, como trade, também haja participação ativa.
A gente já ultrapassou barreiras, mas eu quero levar nossa cidade para mais longe e eu quero levar mais empresários comigo, porque acho que os pequenos negócios ainda não têm noção do que a gente pode se tornar. Eu acho que essa é a minha meta: ir mais além e levar todo mundo comigo!
Depois de participar da feira de ecoturismo, organizada pelo Sebrae, em Bonito (MS), Camilla concluiu que este é seu sonho: que Presidente Figueiredo alcance um patamar de referência nacional e internacional e que seja reconhecida pelas suas belezas naturais e pela qualidade do turismo.
Essa é a minha missão como turismóloga, muito mais do que como empresária, porque realmente quero muito levantar a bandeira do Turismo Responsável. Ainda mais porque aqui se vive um turismo de natureza e, se a gente destruir tudo, o nosso turismo vai estar com os dias contados. Por isso luto muito por um turismo realmente sustentável.
Para isso, o principal desafio enfrentado foi sensibilizar sua equipe quanto à importância de cuidar das relações com a natureza, entre elas e com elas mesmas. Até então ninguém tinha trabalhado numa empresa que pensasse nelas e no ambiente ao redor. Os empresários pensavam só em si e no próprio bolso. Colocar placas na cachoeira, por exemplo, é a parte fácil. A parte mais desafiadora é mudar a mentalidade das pessoas. Uma vez que as colaboradoras entendem e adotam esse pensamento sustentável, ele se torna a cultura da empresa, que, naturalmente, é transmitida aos hóspedes. Além de fazer parte do COMTUR, a Pousada da Milla possui uma ligação muito forte com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Não existe nada formalizado, mas por ser formada pela instituição e manter contato com os professores, Camilla é frequentemente convidada para dar palestras no Núcleo de Ensino Superior de Presidente Figueiredo (NESPF), da UEA, que oferta o curso de Turismo. O hostel também está sempre de portas abertas aos estudantes e estagiários. E agora, com o movimento do trade, a ideia é manter essa proximidade para a organização do turismo do município.
O que aprendemos com o caso da Pousada da Milla?
Ter um propósito declarado: colaborar para que Presidente Figueiredo entre no mapa turístico do estado do Amazonas.
Trabalhar em coletivo para transformar o município em um destino turístico.
Compreensão da sustentabilidade em todos os pilares.
Contratação de mão de obra local, preferencialmente feminina, e valorização das colaboradoras.
Tomada de responsabilidade para liderar a organização e criar a governança turística no município; articulação do trade, realização de eventos e busca de parceiros como o poder público, o Sebrae e a universidade.
Esforço na promoção do destino, com a participação em feiras e trazendo influencers ao local. Esta estratégia gerou um aumento do tempo de permanência do turista no município, que deixou de ser apenas um destino de “bate e volta” de Manaus.
Cuidado na gestão de pessoas: qualificação, diálogo, celebrações, gestão compartilhada. Formação interna das colaboradoras, remuneração acima da média do mercado, benefícios etc.
Destaque nas práticas ambientais: extinguiram o plástico da operação e não vendem garrafas plásticas. Separam e destinam os resíduos, inclusive transportando para Manaus o que não é tratado no município.
Apesar de ser um empreendimento pequeno, demonstra bastante preocupação e grande tomada de responsabilidade em relação ao seu porte.
Café da manhã agroflorestal, orgânico, de produtores locais.
Parceria constante com a universidade, tanto recebendo estagiários quanto colaborando para a formação dos estudantes, compartilhando conhecimento.
Execução de ações pro bono: mesmo sendo uma pequena empreendedora atarefada, numa cidade pequena, encontra tempo para se dedicar voluntariamente à organização do turismo/ trade no município e na universidade.
Assumir um posicionamento público de “mulheres na liderança”, em um ambiente ainda machista e conservador, é uma tomada de responsabilidade e um compromisso público com o empoderamento feminino. Novamente, um ato de coragem.
Protagonismo na rede de hostels e criação de mapa dos hostels liderados por mulheres: por meio do Google Maps, Camilla mapeou todos os hostels do Brasil cujas proprietárias são mulheres.
Boa reputação em plataformas como Tripadvisor e Booking gera confiança e credibilidade na hora da reserva.
Av. Padre Calleri, 60 – Presidente Figueiredo/AM. Tel (92) 98447-5713