ENGENHO TRIUNFO (Areia/PB)
Com o objetivo de inspirar e promover avanços nas discussões e práticas sobre turismo responsável e sustentável no Brasil, o Ministério do Turismo – MTur e o Centro de Estudos de Turismo e Desenvolvimento Social (CETES/USP) lançaram o livro “Turismo Responsável: resultados que inspiram”, de autoria de Marianne de Oliveira Costa, Ana Rosa Proença, Karina Toledo Solha e Gustavo Pereira Pinto. Elaborado pelo Instituto Vivejar, com apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, o livro reúne 10 exemplos de iniciativas comprometidas com um turismo de impactos positivos em território nacional. Uma delas é o Engenho Triunfo, cuja matéria reproduzimos abaixo.
Mas independentemente de ler esse trecho aqui no Lugarzinho, vale a pena demais você ler o restante do livro, que traz todas as iniciativas selecionadas e um amplo contexto em que nasce e se desenvolve o movimento do Turismo Responsável, além de muitas dicas de como empresas, destinos, organizações e viajantes podem começar a colocar a responsabilidade em prática e motivações para serem adotadas durante o processo. Divirta-se!
ENGENHO TRIUNFO (Areia/PB)
“Um misto de amor e empreendedorismo que se transformou em uma grande empresa sustentável e responsável”.
Há quase 30 anos, o casal Antônio Augusto e Maria Júlia, paraibanos do município de Areia, tomaram uma decisão em conjunto: empreender. Tudo começa num pequeno sítio que Antônio Augusto havia recebido de herança. Ele tinha o sonho de produzir cachaça e se dedicou muito para chegar no Triunfo de hoje.
No início, sem muitos recursos financeiros. Antônio inventava as próprias máquinas enquanto Maria Júlia conciliava dois empregos diurnos e, à noite, com os quatro filhos, ajudava a engarrafar a cachaça em embalagens plásticas. Em 2001, as garrafas PET deram lugar às garrafas de vidro. Maria Júlia deixou um dos empregos e passou a vender de bar em bar a cachaça produzida por eles.
Aos poucos, a Triunfo foi se estabelecendo no mapa da cachaça e, com ela, a cidade de Areia, que desde o início já estampava os rótulos das garrafas, sendo homenageada com uma perspectiva de suas ruas em ilustração em bico de pena elaborada por um artista local. Com o crescimento da demanda, foi necessário investir na infraestrutura, nas máquinas.
Sem grandes condições financeiras, as dificuldades eram vistas como possibilidades: Antônio transformou o moinho de carne de sua mãe em uma máquina de tampar a garrafa, criou uma envasadora com peças do bebedouro de porcos, converteu um lindo baleiro da sogra em um filtro de cachaça, e assim por diante. As vendas aumentaram e o investimento em máquinas maiores e profissionais finalmente foi possível. Assim, em 2006, tomaram outra decisão conjunta: Maria Júlia deixaria seu cargo público no Tribunal de Justiça para dedicar-se integralmente ao negócio. Além disso, convenceu o marido a abrir o engenho para o turismo.

“Eu disse que a gente não ia mostrar só o processo de produção da cachaça, que tanto me encanta, mas eu ia contar a nossa história, que era para incentivar as pessoas que sonham”.
Esse também foi o ano em que o Sebrae começou a realizar capacitações gratuitas no estado da Paraíba, e a primeira turma de guias de turismo estava se formando pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial da Paraíba (SENAC-PB). Nesse curso havia três pessoas de Areia, com quem logo fizeram parcerias para levar visitantes ao Engenho. O Engenho Triunfo foi o primeiro aberto à visitação em toda a região. A partir daquele momento, para entrar no engenho haveria a taxa de R$ 2. Esse formato era inédito e gerou certa comoção, pois as pessoas estranhavam ter que pagar a visitação. Maria Júlia acreditava que, antes de ganhar dinheiro, era necessário que a cidade se tornasse um destino turístico. Por isso, o valor de R$ 2 cobrado por pessoa seria repassado integralmente aos guias que chegassem com visitantes.
“Nós acreditamos na divisão de lucros e na distribuição de oportunidades na nossa cidade”.
Em menos de seis meses, já recebiam cerca de 100 pessoas por semana. Então, reuniram-se com os guias e combinaram de dividir aquele valor a partir dali – “um pra mim e um pra você” –, porque até então as frutas, os sucos e os doces oferecidos aos visitantes saíam do bolso do casal. Muito rapidamente, outros condutores e mais visitantes começaram a chegar de ônibus para conhecer o Engenho. Foi aí que outras pessoas da cidade começaram a se inspirar e a acreditar. Mais restaurantes e pousadas foram aparecendo na cidade.
“O Brasil não começa em Brasília. O Brasil começa na nossa casa, na nossa comunidade. E a gente tem muitos Brasis. O meu é muito feliz, porque eu sei que eu tô fazendo felicidade pra outras pessoas”.
Em 2008, a gestora de turismo do Sebrae Paraíba, Regina Amorim, pediu ao Engenho Triunfo a indicação de 25 pessoas para uma capacitação em “excelência em atendimento”. Como para Maria Júlia tudo está relacionado ao turismo, foi nas farmácias, nas mercearias, nos supermercados e convidou todo mundo. Mais de 60 pessoas apareceram para o curso. Os supermercados fechavam mais cedo para que os funcionários participassem. Nem todos quiseram ir, mas aqueles que foram começaram a se destacar. Hoje, muitos têm seus próprios empreendimentos.
Em 2012, como consequência do fluxo de turistas, Maria Júlia abriu um hotel na cidade. O hotel é uma sociedade entre ela e sua cunhada Dilene Marques e segue os mesmos valores do Engenho, pois acreditam que, quanto mais estabelecimentos turísticos a cidade tiver, mais turistas conseguirão receber. Consequentemente, mais pessoas vão querer trabalhar com o turismo. Para Maria Júlia, a cana-de-açúcar, que já foi símbolo da monocultura e da escravidão, hoje é o símbolo da sustentabilidade. Porque, dela, nada se perde. “Para produzir a cachaça, a gente esmaga, esmaga, esmaga a cana-de-açúcar. Desse processo, sai o bagaço” (Maria Júlia, 2023). No início, Antônio doava esse bagaço para produtores de gado, pois sabia como era difícil alimentar os animais em tempos de seca.
Um dia, uma grande empresa paraibana pediu esse bagaço e ele deu tudo. Até hoje não recebemos um “obrigado”. Mas eu agradeço a essa empresa, porque eu fiquei brava, viu? Tu sabe o que é uma mulher paraibana arretada? Pois eu fiquei arretada! Eu disse: “Olhe, se você quer dar às pessoas necessitadas, tudo bem, mas aos ricos, não. O bagaço, de agora em diante, é meu! Eu vou vender, eu vou fazer dele o que eu quero”.
Tudo que entra com a venda do bagaço da cana-de-açúcar nunca foi incorporado ao capital da empresa, é revertido para a melhoria de vida dos funcionários. Com esse dinheiro, o Engenho montou um refeitório com micro-ondas, televisão e sala de descanso. Pagam o tratamento odontológico de 66 funcionários, com tratamentos de canal e próteses dentárias.
Em 2010, com o apoio do Serviço Social da Indústria (SESI), erradicaram o analfabetismo na empresa, que hoje conta apenas com cursos de capacitação. Vale salientar que, para obter este bom resultado, Antônio dispensava os funcionários duas horas ao dia, sem qualquer prejuízo financeiro para eles. A empresa sempre reserva uma caixinha para quando alguém precisa de um exame mais urgente. Ainda assim, sobra dinheiro, então é por meio dessa fonte que o Engenho Triunfo também colabora para a vida cultural da cidade, investindo em festivais e eventos em parceria com a Associação de Turismo Rural e Cultural de Areia (ATURA). Na pandemia, realizaram um festival virtual de música em parceria com a Associação dos Produtores de Cachaça de Areia (APCA), para apoiar os artistas locais e divulgar a cidade. Recentemente, foi lançado o “Prêmio Engenho Triunfo – Empreender é Compartilhar”. Como forma de incentivo, serão doados os valores de R$ 1.000, R$ 2.000 e R$ 3.000 para os participantes que, através de um vídeo de dois minutos, convencerem a diretoria do Engenho Triunfo que irão utilizar o prêmio para empreender transformando vidas.
“Vamos fazer do dinheiro o nosso parceiro, vamos melhorar esse mundo”.
O município de Areia conquistou, em 2021, o título de Capital Paraibana da Cachaça. Agora a APCA quer investir em rotas do Mel e do Café, para que cada estabelecimento, cada sítio e cada pessoa que se determinou a ficar no campo possa agregar valor ao seu produto e se encantar em receber os visitantes.
A gente espera motivar as pessoas a ter prazer em mostrar seus produtos, porque cada um tem um diferencial. Cada um vai ter o seu jeitinho de servir o café, de torrar o café. E cada vez mais a gente vai distribuir riqueza em nosso território (Maria Júlia, 2023).
Em 2017 mudaram o engenho para o endereço onde estão até hoje, um local maior, em que seguem realizando seus sonhos ao lado dos filhos e cedem espaço para que seus funcionários possam expor seus produtos também. “O Parque Engenho Triunfo tem tudo, só não tem restaurante, pois nossa intenção é que o dinheiro circule na cidade” (Maria Júlia, 2023). Hoje, a Triunfo vende mais de 250 mil garrafas por mês e a demanda só cresce, inclusive para exportação. São 69 empregos diretos e mais de 1.000 indiretos. Atualmente, o Engenho Triunfo recebe de 500 a 700 visitantes por semana (baixa temporada) e cerca de 1.000 visitantes nos finais de semana (alta temporada). A taxa de visitação, em 2023, era de R$ 25, inclusa neste valor a comissão de 20% para o guia responsável pelo grupo. Apesar do Engenho receber a todos, a comissão só é paga para os guias credenciados, como maneira de incentivo aos estudos e à capacitação deles.
Sei que a minha cidade tá dentro de mim, é um amor infinito que eu tenho por essa cidade, que a minha família tem por essa cidade, porque aprendemos isso em casa. Aqui, nós temos responsabilidade pelo lugar que a gente vive, e essa é toda a nossa luta. E não adianta você crescer sozinho, você tem que crescer com todo mundo junto.
De 60 leitos em 2006, o município de Areia passou a contar atualmente com quase 1.000 leitos, e com perspectiva de crescimento. Em Areia, todo dono de restaurante, bar, hotel, é da própria cidade. Areia não possui grandes investidores de fora, quem investe e ganha dinheiro é gente da cidade. A cidade pratica o Turismo Responsável, pois valoriza tudo que é do local. As pousadas e os restaurantes compram dos produtores locais e indicam aos turistas outros lugares e engenhos da cidade para visitar. Mas Turismo Responsável é também sobre não explorar o turista, por isso o Engenho Triunfo não cobra preços exorbitantes, tampouco pratica preços diferentes em baixa e em alta temporada, afinal, estão lutando por um turismo que seja permanente. Em 2024, o Engenho Triunfo completou 30 anos. Essa história é contada para incentivar as pessoas que sonham a persistir e para mostrar que não é pela exploração que se obtém uma boa conta bancária, e sim compartilhando com as pessoas. “No final de cada passeio, agradeço quem chegou até aqui. Porque a cachaça Triunfo mudou a vida da minha família, mas o turismo mudou a vida da minha cidade” (Maria Júlia, 2023).
O que aprendemos com o caso do Engenho do Triunfo?
Empreendedorismo feminino.
Não existe idade para trabalhar naquilo em que se acredita.
No passeio, os visitantes não conhecem só o processo de produção da cachaça, mas também escutam a história do Engenho Triunfo e do casal Maria Júlia e Antônio Augusto.
A venda do bagaço começou em 2006 e hoje é bastante significativa, medida em toneladas. Este dinheiro mantém o tratamento odontológico dos funcionários e uma caixinha para exames e eventualidades. O restante contribui para o financiamento de eventos culturais no município, como o Festival das Flores, um festival de música, além do patrocínio de alguns músicos locais.
Não há diferença na taxa de visitação em alta ou baixa temporada. O tarifário só muda com o ano, quando sai o índice da inflação.
Os funcionários são todos registrados e bemremunerados, inclusive recebendo parte dos lucros da empresa. A equipe é toda local e foi formada lá, com grande esforço de capacitação.
A gestão do empreendimento é compartilhada com funcionários, há premiações em viagens para a capital e a recepção dispõe de uma loja
para a comercialização de produtos feitos pelos funcionários, cujos rendimentos são 100% revertidos aos próprios empreendedores, apoiando a economia criativa.
Cota mínima de bebida, porque, ao se trabalhar com bebida alcoólica, é muito importante servir doses pequenas.
O Turismo Responsável não só compreende o Engenho Triunfo, mas também a cidade toda: por meio da Associação de Turismo Rural e Cultural de Areia, todos os equipamentos e serviços turísticos (pousadas, restaurantes etc.) são incentivados a comprar e indicar a compra de produtos de fornecedores locais.
Tem como princípio a divisão da oferta de serviços com os demais estabelecimentos da cidade, por isso nunca abriu um restaurante e incentiva seus visitantes a conhecer outras rotas de engenhos da cidade.
Inspirou outros a investir no turismo na cidade, abrindo serviços de hospedagem e restaurantes.
A forma como vê o dinheiro como aliado demonstra seriedade e profissionalismo, com negociações claras com funcionários e parceiros, com transparência e relações ganha-ganha.
Areia se tornou destino referência na Paraíba e no Nordeste, sendo reconhecida em 2021 como a Capital Paraibana da Cachaça. É hoje destino de missões técnicas de todo o Brasil.
Participação ativa na Associação de Turismo Rural e Cultural de Areia, na Associação dos Produtores de Cachaça de Areia e em projetos que beneficiam o coletivo, como a elaboração das rotas do Café e do Mel.
Produção associada ao turismo como vetor de desenvolvimento local e fomento de fluxo turístico.
A união fortalece os empreendimentos locais para não permitir que grandes investidores de fora venham com outra forma de fazer negócios.
Conta apenas com fornecedores locais, com quem construiu uma relação de gratidão e parceria. Promove a consciência de fazer o dinheiro circular no município.
Incentivo à qualificação profissional e à profissionalização: somente guias credenciados podem receber comissão por levar pessoas ao empreendimento.
Reconhecimento externo por meio de premiações nacionais e internacionais.