TORTO BAR (Santos/SP)
Se eu falasse tudo o que se há para falar sobre o Torto, provavelmente eu seria preso ou assassinado. Certas coisas não se conta por aí. Quem viu, viu e pronto. A noite foi feita para esquecer. E o resto é lenda.
Não é verdade, por exemplo, que quando Braz Cubas fundou Santos, o Torto já estava lá. Isso é exagero, apesar do grande interesse dos arqueólogos pelas mais diversas espécies de dinossauros encontrados ali dentro, em sua maioria vivos e bem tratados.
Também é mentira que Isaac Newton não tenha reconhecido a prova, quando o público do Torto desmentiu sua máxima, provando que diversos corpos podem, sim, ocupar o mesmo lugar no espaço. Isso no Torto era comum.
O fato é que o Torto nasceu em 1984 da então já existente Banda Jornal do Brasil, formada pelo músico, jornalista e mito local Julinho Bittencourt, o Roberto Biela (que hoje também toca muito Chico Buarque em Sampa) e o Luís Cláudio dos Santos, que, acompanhados do Alfredo, tio do Julinho, cismaram de montar um bar onde a própria banda e mais algumas outras pudessem tocar todas as noites.
O lugar escolhido era o mais improvável de todos: uma pequena loja no térreo de um imenso edifício de apartamentos que era um dos mais tortos da cidade, a ponto de ter sido interditado nos anos 70. Ali, na raça, eles mesmos ergueram paredes e correram atrás de fornecedores, de pessoal para trabalhar, da divulgação boca a boca e da definição do nome que, claro, não poderia ser outro.
Como em qualquer bar, havia ali uma boa variedade de bebidas, da caipirinha aos mojitos, da água ao whisky, mas o calor sempre faz com que o público se direcione às cervejas. Também como em qualquer bar, havia boas opções de porções – como a de isca de merluza, uma das preferidas – e de sanduíches – como o beirute de frango com catupiry, que já se tornou um clássico matalarica da fauna noturna.
Mas o Torto não era um bar qualquer e, por isso, desde a sua inauguração até seu fechamento, mais de três décadas depois, ele seguiu lotado. É claro que houveram períodos de baixa. Muita coisa rolou, o Alfredo saiu, depois o Luís, o Michel entrou, o Biela saiu, depois o próprio Julinho, mais gente chegou e por aí vai. Teve até períodos de pouquíssimo público, com muitos boatos de fechamento, mas até então todos foram rápidos e passageiros, pois o padrão era a lotação e assim parecia que ia ficar eternamente.
A casa inaugurou com 600 pessoas que, sabe-se lá como, fizeram questão de entrar. Diz a lenda que muitos nunca mais saíram.
O que faz do Torto uma casa tão especial é uma coisa só: a música. O bar sempre foi dirigido por músicos e assim este sempre foi o centro de tudo. A seleção era eclética, com ritmos latinos, samba, reggae e afins, mas apoiada principalmente no rock e na velha e boa MPB, como indicava o painel feito pelo Oswaldo, que mistura Beatles, Pixinguinha, Cartola e Jimi Hendrix num mesmo cenário.
Por ali passou muita gente boa, dos simpáticos garçons ao saudoso “Seo Zé”, que cuidava tanto da entrada quanto da saúde dos frequentadores. No som, nem se fala. Além do próprio pessoal da Jornal do Brasil, o minúsculo palco da casa foi habitado por sons tranquilos para quem chegava cedo, com o Carlos Pontes ou o Adriano Branco; por bandas reggaeiras como o Arte Cínica, a Macaco Prego ou o Casa Rasta, que tinha o hoje repórter Abel Neto nos vocais; pela turma rockeira do Via Rock ou do Discover; por bluseiros como os Druidas, por bandas hoje já clássicas Carlos Bronson e Blasfêmia, do múltiplo João Maria; por gente que depois saiu cantando Brasil afora como o Murilo Lima e o pessoal do Charlie Brown Jr e por um mundo de gente que sempre fez a noite santista musicalmente privilegiada.
E por ali ainda seguiu passando muita coisa boa, gerações e gerações da música de qualidade. A fiel multidão já sonhava com as festas de 40, 50 e 100 anos do Torto, de preferência com as mesmas bandas, o mesmo pessoal e a mesma lousa na entrada anunciando as atrações da noite.
Enquanto pôde, o Torto seguiu firme e forte, mantendo seu grande e difícil mérito de dizer “não” ao sucesso fácil em prol da qualidade musical e cumprindo seu papel de “desencaminhar garotos e garotas fadados a uma vidinha careta” na cidade. E se um dia ele ressurgir, estaremos todos lá, afinal, somos muitos e todos tortos.