EMPÓRIO SAGARANA 2 – Vila Madalena
* Estabelecimento fechado
Oi João. Desculpa a demora danada, mas vou retomar aquela prosa que começamos tempos atrás lá no Empório Sagarana 1, de modo que é já já que a gente vai se pegar a saudadear.
E já peço desculpa desde agora de te pastichar desse jeito meio sem jeito, mas não tem jeito de a gente voltar nessa história sem misturar as ideias e ir trombar as lembranças lá nas portas da tua sagarana.
Acontece que aqueles dois de quem te falei – o Paulo e a Priscila – viraram três, graças ao menino Gael que veio enfeitar mais o mundo e um dia herdar a canoa do pai. E o rebento alegrou tanto a vida que eles se dispuseram a abrir outro bar, em parceria com a Simone e o Thiago, menor ainda que aquele outro, a ponto de conseguir se fazer de escondido no meio de um dos lugares mais cheios de gente que tem.
O bar era um armazenzinho ainda com mais jeito de armazém que aquele, desses que a gente chega e se apeia no balcão pra prosear com o dono e tomar cachaça até esquecer as dores novas e se concentrar só nas mais curtidas. E nasceu pra ser armazém mesmo e não um bar, mas sabe como são as coisas do mundo…
Tudo que se via de longe era uma luz amarelada e acolhedora que buscava a gente pra lá. Mais de perto se via o assoalho rústico, o balcão de madeira que parecia que abraçava a gente, o lustre feito com a roda de carroça, as poucas mesas dos tempos de como deve ser e um sem fim de garrafas. E deram de botar isso justo no meu caminho.
O Empório Sagarana da Vila Madalena, ou Sagalena – pros íntimos, brotou ali no finzinho de 2012 numa casinha que foi uma loja de móveis e ainda antes uma marcenaria, no tempo que a Vila era uma vila e os vizinhos eram vizinhos. Estavam lá os afrescos cavocados na parede e o ferro de limpar as botas na entrada da casa pra provar que eu não estava mentindo.
E só não passa de soslaio porque o pessoal já achou ele. Achou primeiro as cervejas, que são umas duzentas de tudo quanto é cafundó desse mundão, de tudo quanto é gosto e de tudo quanto é invenção pra não me deixar passar sem botar reparo e ficar com a língua molhando a roupa. Tinha até umas coisas bem diferentes como a tal da Júpiter, que é feita por um sujeito que resolveu fabricar em casa e começou a fazer tanto que resolveu vender – e entregava ela viva e já geladinha do jeito que tem que ser.
Depois a turma achou os queijos que vinham lá das suas Gerais, da Serra da Canastra, e às vezes se juntavam com umas pimentinhas bonitinhas que só pra compor o prato. Tinha outros comes também como lombinho e salaminho e as cumbucas de amendoim, grãos e azeitonas, mas se caia mesmo era nos queijos.
E acharam por fim as cachaças. Essa parte eu nem ia contar, mas o Paulo contou: 593. Ou pelo menos eram quinhentas e noventa e três garrafas diferentes até o dia quando ele falou, mas se é que mudou foi pra mais. Era uma pingoteca linda que doía os olhos de olhar praquelas garrafinhas todas lá paradas enquanto agente se encantava espiando daqui pra lá e de lá pra cá e tudo de novo um monte de vezes.
Era tão bonita que tavam até pensando em batizar ela com o nome do seu Didico, bisavô do Gael, que era um cara que entendia das coisas e dava conta do riscado. E tão bonita que acabou sendo descoberta rapidinho pelos gringos da Madalena.
Eu não te contei mas a terra aqui tá abolotada de gringo graças aos tais de hostels – um tipo de pensão bacaninha e cheia de uma moçada que parece que nem tá aí com as coisas mas que no fundo tá sabendo de tudo. Agora tem um monte desses por aqui, tudo entupido de alemão, francês e americano. Eles chegavam no balcão como todo mundo atraídos que nem mariposa pela luzinha e pelas cervejas mas acabavam rapidinho achando as danadas.
E pra bem tratar dos coitados, o Paulo criou uma degustação que trazia de seguidinha cinco copinhos da bicha: a primeira era novinha, sem envelhecer em lugar nenhum, ainda com gostinho da cana; a segunda era descansada no freijó, das neutras, que não se metem a besta; a terceira era envelhecida no carvalho que é a mais equilibrada delas; a quarta dormia na amburana pra ficar cheirosa; e a última passava uns anos no bálsamo antes de ir pra garrafa e dizem que é a mais madura de todas elas. Seria deselegante de minha parte contar pra tu como é que os gringos saíam de lá.
Mas a questão toda nem é nada disso, mas só aquele ponto que eu te disse lá na outra hora, que é o fato de a gente voltar a ser gente com as gentes de lá. Dos que abriam aos que fechavam era tudo uma molecada cumpridora, ordeira e positiva, sempre disposta a papear e ensinar as novidades e os particulares de cada gole. Dos que ficam aos que passam é gente como a Simone, o Davi, a Adriana, o Gui, o André e a Pati, que mesmo quando desembarcam em alguma curva na descida ou na subida do rio sempre deixam na gente um bocado mais de gente.
E a gente se acostuma facinho com aquilo. E de dia e de noite e no calor e no frio, era sempre bom ancorar ali pra uns goles e uns papos, “sem fazer conta do se-ir do viver”.
Para a tristeza de todos, o Empório do Sagarana foi engolido pela especulação imobiliária da Vila Madalena antes mesmo da pandemia. E se alguém souber onde esse pessoal se escondeu, me conta.