Pedro Schiavon | 14/08/2023 | 0 Comentários

PADARIA 14 DE JULHO

Qualquer coisa que complete 120 anos de idade merece respeito. Se essa “coisa” for uma minúscula padaria em São Paulo, onde enfrenta crises, assaltos e a concorrência das novas e gigantescas “paneterias” que mais parecem pequenos shopping centers, o respeito dobra.

A Padaria 14 de Julho foi inaugurada no dia 14 de julho de 1897, em pleno século XIX e, ao contrário do que se possa pensar, foi ela que deu nome à rua onde está localizada, e não o contrário.

A padaria nasceu de uma grande saudade que Rafaelli Franciulli, mecânico de profissão e recém-chegado da Itália, sentia de sua terra natal. E essa saudade não se traduzia em paisagens de Castellabatti, cidade próxima a Nápoli, ou mesmo nas pessoas queridas que ficaram por lá. Se traduzia, principalmente, no pão que era feito na região, de maneira artesanal, com seu cheiro e sabores únicos.

Foi por causa desta saudade que Franciulli encontrou tempo no seu trabalho para construir, dentro de sua nova morada, um forno extraordinário, com menos de meio metro de altura, mas com 10 metros de comprimento por outros 10 de largura, aquecido a lenha e onde 400 pães podem ser assados ao mesmo tempo.

Com essa preciosidade que até hoje produz pães, Rafaelli começou a aplacar sua saudade e a aguçar o olfato e o paladar da vizinhança, que passou a solicitar cada vez mais pães, mais novidades, mais delícias e mais dedicação, até que ele resolvesse largar de vez a mecânica para abrir oficialmente sua padaria.

Aos deliciosos pães foram acrescidos uma infinidade de produtos e a padaria cresceu – em variedade e em clientela, já que em tamanho ela se recusa a crescer. Mas o sucesso pode ser creditado realmente à qualidade de todos os produtos e, especialmente, ao fermento que, vindo da Itália, é “cultivado” diariamente na padaria à base do acréscimo de farinha e água, mantendo-o “vivo” para que o pão fique macio, crocante e saboroso por até quatro dias.

Este fermento é tão importante que sua falta chegou a causar sérios problemas a Wilson Franciulli, filho e sucessor de Rafaelli na padaria. O que ocorreu foi que, na época do presidente Getúlio Vargas, com a guerra e a impossibilidade de importar o fermento, Wilson se recusou a fabricar seu pão com outro produto, por ele ficar duro e escurecido, e acabou sendo preso como “anti-patriota”.

O mesmo Wilson viveu outra história curiosa na padaria quando, vítima de alguns males, precisou se tratar com fisioterapia. Sem dinheiro para tal despesa, tratou-se gratuitamente por muito tempo no Palestra Itália, que então acabava de mudar seu nome para Palmeiras. E muito por isso as amizades foram crescendo e sua padaria é até hoje um pequeno reduto de palestrinos.

Wilson vendeu a padaria em 1977 e ela ficou fora da família por 20 anos, até Alexandre Franciulli, neto de Rafaelli e filho de Wilson, comprá-la de volta em 1997. Ele é um legítimo chef italiano, com reconhecimento da Federazione Italiana Cuochi, associação que segue os padrões italianos de cozinha.

Seja lá o que isso signifique, o fato é que as palavras “Itália” e “cozinha” parecem andar sempre juntas por aí. E por isso Alexandre abriu, ao lado da padaria, há alguns anos, uma pequena cantina, onde serve massas e diversos produtos da própria 14 de Julho, motivado principalmente pelos clientes que reclamavam por um espaço para sentar e saborear ali mesmo as delícias oferecidas pela loja.

Um entusiasmado cliente afirma que há na padaria “mais tentações gastronômicas por metro quadrado do que em qualquer outro lugar do mundo”. É provável. As prateleiras que ocupam os apertados metros quadrados do local oferecem, além dos clássicos pães italianos, 36 tipos de pães recheados diferentes, sendo os mais procurados os de calabresa e os de queijos com azeitona.

Oferecem também mais de 20 tipos de antepastos, com destaque para a sardela, a alichela e a lingüiça picante com vinho branco e alho. Apresentam ainda uns 20 tipos de patês e coisas pitorescas como a frolà, um pão criado ali com quase 2 metros de cumprimento por 1 de largura e que pesa cerca de 12 quilos, sendo inteiramente recheado com calabresa, azeitona, mussarela, provolone, tomate seco e berinjela.

Quase escondidas entre as linguiças, as massas e os queijos, você encontra as geladeiras, onde há pernas de cabrito, bracholas, nhoques recheados, polpetones e o famoso pernil assado, que vira o sanduíche que é um dos principais responsáveis pela fama da casa.

Os doces são um caso à parte. Numa mesa repleta de tortas de damasco, bolos com castanhas e merengues, encontra-se doces tipicamente regionais, como a paglia italiana, os canolli e os crustulli, que levam farinha de trigo, anisete, erva-doce, vinho branco, canela e açúcar, mas cuja receita exata só quem sabe é dona Luiza, tia de Alexandre. É ela quem prepara o doce diariamente, após um ritual que inclui apagar as luzes, estender a toalha e fazer uma oração, e cujo resultado é inteiramente jogado no lixo caso haja alguma interferência, alguma briga ou mesmo um único palavrão pronunciado durante a feitura do doce.

Os pequenos rituais fazem parte do trabalho da pequena padaria. Todos os dias, ao chegar, Alexandre Franciulli encontra um pequeno saco de farinha. Ele relaxa, faz uma rápida oração e espalha a farinha pela calçada, em frente à casa. Assim fazia seu pai. Assim fazia seu avô. Assim farão seus descendentes.

Depois disso, está pronto para mais um divertido dia onde, muito mais que vender, conversará pessoalmente com seus clientes e amigos, trocará receitas, falará sobre o dia e oferecerá novidades para que eles provem e aprovem. Assim é na Itália. Assim é em São Paulo. Assim sempre será onde houver respeito e amizade entre as pessoas.

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