BOTEQUIM DO HUGO
São Paulo é um imenso coração, dentro do qual pulsam milhões e milhões de pequenos corações, cada um deles com uma história incrível a ser contada. Uma delas começa assim:
Início do século XX. A região onde hoje se encontra o bairro do Itaim é uma grande várzea dividida em chácaras pertencentes aos herdeiros do general Leopoldo Couto de Magalhães – entre eles seu filho homônimo apelidado de “Bibi”, devido ao hábito de usar bonés de bico.
É ele quem dá início, já na década de 20, ao loteamento das terras, dividindo-as em pequenos lotes de 500 metros quadrados, uniformizados no padrão 10m x 50m, que são vendidos principalmente a comerciantes italianos e portugueses.
Um desses novos moradores é Marcelino Cabral, imigrante português que vê ali uma oportunidade de um futuro melhor. Em 1927 ele monta sua casa nos fundos do terreno e cria, na parte da frente, a Mercearia São José.
A Mercearia São José é uma venda de secos e molhados instalada na minúscula garagem que fica na entrada do terreno do Sr. Marcelino, de frente para a rua Pedroso Alvarenga, uma rua de terra onde seus filhos brincam enquanto crescem ajudando o pai na venda.
Anos 60. O Itaim Bibi ainda é um bairro tranquilo onde todos se conhecem. Nas tardes de domingo, as famílias ficam com cadeiras nas calçadas enquanto as crianças brincam na rua, sem medo de roubos ou atropelamentos.
Já que ninguém chamava a mercearia por seu nome mesmo e sim pelo de seu dono, ela agora se chama Empório Cabral. Na frente dele, Hugo e Emiliana, netos do Sr. Marcelino, brincam na rua.
Pulemos de repente para o século XXI. O Itaim Bibi se transformou em um bairro agitadíssimo, com prédios imensos, carros importados e um sem-fim de bares chiques que fazem da região uma das mais caras e disputadas da cidade.
As casas sumiram, dando a impressão de que o bairro simplesmente desapareceu e colocaram outro no lugar. Os arranha-céus, as grandes redes de supermercados, as farmácias e as grifes da moda deixam claro que tudo no Itaim mudou.
Ou quase tudo. No meio desse turbilhão de modernidade encontra-se, quase camuflada, a casa da família Cabral e a velha mercearia, agora com o nome de Botequim do Hugo e tocada, há 25 anos, por Hugo e Emiliana, os netos do Sr. Marcelino.
No legítimo e minúsculo botequim, o tempo parou. O bar conserva, a duras penas, sua fachada original, com paredes amarelas e um portão de grade ao lado, que dá num pequeno quintal que leva à casa da família, mas que virou espaço para mais algumas mesas.
As paredes internas e o quase centenário armário que guardava os produtos da mercearia hoje hospedam uma infinidade de lembranças, instrumentos, rádios antigos, copos, lampiões, bonecos, quadros, cornetas, revistas, berrantes, fotografias e sabe-se lá mais o quê ou quantas coisas, tudo misturado, formando um conjunto caótico onde é possível passar horas – talvez dias – descobrindo novidades.
Espremidos atrás do balcão ou circulando entre as mesas e potes de tremoços, salsichas e paçocas, Hugo e Emiliana, tocam sozinhos o atendimento aos fiéis clientes, que são muitos e muito amigos, quase da família – ou pelo menos se sentem assim.
Entre antigos frequentadores de cabelos grisalhos e jovens que deixam o trabalho no fim do dia, suas vinte e poucas cadeiras lotam de segunda a sexta (a casa não abre nos finais de semana, como nos velhos tempos) com gente em busca de um bom bate-papo, cerveja gelada e os deliciosos pastéis, caprichosamente preparados pelos outros familiares, que se encarregam da cozinha da casa.
Outras opções? Apenas o trivial bom e barato de qualquer mercearia dos tempos idos, como algumas poucas bebidas, sanduíches de mortadela ou carne moída e porções de salame, queijos ou azeitonas.
Tudo devidamente separado entre “secos” e “molhados” em um cardápio caprichosamente escrito a mão! E tudo devidamente oposto aos “molhos de tamarindo neozelandês com raspas de trufas brancas italianas e toques de avelãs da Prússia” que infestam a região.
Enfim, o Botequim do Hugo é um lugar diferente. Um bar muito hospitaleiro e carinhoso, com jeitinho de antigamente, gostinho de casa de família e um fortíssimo cheiro de saudade no ar.